sexta-feira, fevereiro 10, 2006

NACOS DE DOR À ALENTEJANA
























De joelhos rendidos no chão mastigado pelos cascos duros da gente do campo, recolhe cuidadosamente as aparas de mais um dia esculpido com a dor e o suor.
As arestas afiadas do caminho engrossam-lhe as mãos calejadas e ceifam-lhe as esperanças maduras, já quase secas pelo sol cansado de domingo.
A aldeia sabe que a pobreza que lhe veste a alma é maior que a que lhe despe o corpo.
Quando o vêm passar ao longe, de braço dado com a sua própria sombra, temem que a sua verdade negra revele os medos mais bem escondidos da aldeia.
José Calvário é homem de curtas palavras e cara fechada aos olhares alheios.
Casado com a solidão, fiel amante da terra, entrega os seus dias ao nobre ofício da tortura do tempo, que teima em passar devagar.
O corpo de José flutua discretamente pelas planícies cultivadas pela força da fome e da luta pela vida, mas o seu humilde pensamento ibernou algures, no silêncio insurdecedor de um casulo húmido feito de memórias gastas.
Já ninguém se lembra ao certo quando foi, mas um dia, José deixou de ser homem para ser fruto, semente, pedra ou apenas horizonte...
Dizem, os mais soltos de miolos, que embalsamou o próprio coração, com a palha seca da terra que o amassou, depois que viu o seu amor partir. E que guarda religiosamente os bocados mortais da sua amada Amélia das Dores.
A mulher foi vítima insólita de um tiro certeiro, caído certa noite do céu Alentejano, enfurecido por uma trovoada caprichosa com boa pontaria. Tanto campo para queimar e o raio da tempestade revoltosa, como nunca se havera visto, foi atingir em cheio o alto da cabeça sonhadora de Amélia, descendo-lhe vulcanicamente até aos seus pés de menina casadoira, numa viagem vertiginosa de toneladas de energia bruta, que devoraram alarvemente os tecidos frágeis desta mulher singela do campo. E eis que se não bastasse tal estranhesa, num golpe seco de maldade e magia, ainda a transformou em árvore, de tronco bem firme na terra como se sempre ali estivesse plantada.
José Calvário perdeu a juventude, a fome e a vontade de ser gente.
Chorou convulsamente aos pés da bela árvore, que cheirava ainda à presença da sua mulher amada. Foram dias e dias de lágrimas derramadas que deram de beber à terra seca e esquecida.
Perante tão divina oferta, as raízes não fizeram cerimónia e sorveram sofregamente o líquido precioso, como se fossem crias esfomeadas à procura da primeira refeição do dia.
Foi preciso Amélia morrer, para a vida ali acontecer outravez. (continua noutra geração)

1 comentário:

António Maia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.