terça-feira, maio 02, 2006

U M A V E L H A H I S T Ó R I A

Uma velha senhora acorda de uma siesta profunda num banco de jardim primavera, numa tarde solarenga e… não sabe quem é. Reconhece o mundo à sua volta e o sol que lhe aquece as pernas como se fosse da família, mas não se lembra de si.
Vê os gatos que se enrolam debaixo dos carros e sabe que gosta deles, mas não se lembra porquê.
Vê as pessoas que passam no jardim, a vida que se vive continua a mexer tal e qual como sempre foi.
Os miúdos continuam a esfolar os joelhos no chão, a relva continua a crescer, os cães continuam a mijar no passeio, as folhas a cair devagar e o vento a soprar levezinho…
A velha senhora sabe que é gente e sente que é uma personagem desta história, mas esqueceu-se subitamente do seu papel.
Sem guião à vista nem argumento sólido para explicar este estranho vazio de memória, vê-se perdida dentro de um corpo velho e ferrugento, que não sabe de onde veio nem para onde vai. (Sabe que é pessoa, faz sombra e se tombar demais cai!…)
Assim, deixa-se ficar quieta enquanto a dúvida lhe engole convulsivamente o pensamento, como se fosse um comprimido para as dores.
Tenta, com a força que lhe resta dos músculos secos de mulher velha, segurar o pânico a braços e distrair o desespero, entregando os ouvidos à suave melodia dos pardais atarefados.
A manobra é bonita, mas não chega. Então, serra os dentes e decide contar a história que entretanto já se tinha desenhado, desde que se lembra de acordar sem memória, na esperança de que o seu breve passado pudesse adivinhar um futuro qualquer.
Surpresa foi constatar que por ser velha, solitária, mal parecida ou ordinária, ninguém acudiu ao seu pedido de conversa vulgar. Não houve alma que atendesse à sua discreta proposta de diálogo simples. As palavras da velha senhora desvaneciam no olhar duro das pessoas que passavam no jardim sem resposta nem reacção, como gotas pesadas de uma chuva cansada. Eles eram como muros feitos de betão denso e frio, impenetrável, impermeável à simpatia e ao amor, eram adeptos aficionados da solidão, mestres da arte humana destes tempos – a dieta do egoísmo, que nos separa a cabeça do coração.
Disse um pardal que assistiu sem piar a este episódio, serenamente, do alto do seu firme galho. Que a velha era senhora respeitável, de bom trato, com aroma agradável e bem conservada em boas intenções, aspecto afável e confortável.
O problema não morava aqui…
Pobre velha chegou ao fim dos seus dias sentada num banco de jardim primavera sem ninguém lhe dizer que tinha chegado a sua hora.
A senhora sem passado e sem memória, era afinal, uma defunta cuja história ficou esquecida na suave dormência de um sono profundo sem dor.
A velha senhora ali permaneceu imóvel no banco de jardim. Tinha uma postura tão digna e uma pele tão fresca alfazema, que ninguém percebeu que já estava morta.
Anoiteceu e amanheceu no jardim e a vida continuou a mexer como se nada fosse.

1 comentário:

António Maia disse...
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